Crise Não Epiléptica Psicogênica. O estigma e a epilepsia
Crise psicogênica é fingimento? Uma condição presa em um limbo entre a Neurologia e a Psiquiatria que pode ser mais do que aparenta.
As crises não epilépticas psicogênicas (CNEP) são alterações episódicas de diminuição do auto-controle com manifestações motoras, sensitivas e mentais, não causado por descargas elétricas anormais no cérebro. Em outras palavras, é uma crise que se assemelha muito com uma crise epiléptica, mas que não é causada por epilepsia e sim por um transtorno psiquiátrico, sem outras causas "físicas". Elas se enquadram em um Transtorno Conversivo segundo o DSM-V, mas alguns autores consideram a classificação como Transtorno Dissociativo também adequada. A diferenciação com a epilepsia pode ser dificil em alguns momentos, mas algumas características podem auxiliar na diferenciação, como a presença de olhos fortemente fechados e vídeo-EEG normais durante as crises (considerado padrão ouro para esse fim), algo incomum na epilepsia. Em geral, antes do diagnóstico, as CNEP são levadas primeiramente ao centros de saúde para atendimento como epilepsia, o que faz com que muitas vezes, apesar de se tratar de um quadro psiquiátrico, a suspeita inicial e diagnóstico é feito por outros profissionais.

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Para muitas pessoas o termo psicogênico é utilizado para indicar algo "inventado" ou falso. No entanto, apesar dessas crises poderem ser simuladas, na maioria das vezes a CNEP é considerada involuntária, principalmente devido sua origem psiquiátrica. O termo também não indica um condição benigna e com poucos impactos na vida do paciente. A CNEP causa graves consequências sociais e psicológicas como baixa escolarização, desemprego e exclusão social. Além disso tem um forte impacto na qualidade de vida dessas pessoas, sendo considerada pior do que em portadores de epilepsia de difícil controle. Um estudo realizado no Reino Unido por Rawlins e sua equipe em 2017 mostrou que o risco de um paciente com CNEP apresentar percepção de ter sido estigmatizado por sua doença foi 42% maior do que em pacientes epilépticos.
Esses impactos negativos envolvem questões que vão além de características próprias da doença. O termo CNEP é considerado por alguns um diagnóstico neurológico de "conveniência", um meio de indicar que as crises não são relacionadas a epilepsia e sim por uma causa "psicológica", sem se comprometer com um diagnóstico ou mecanismo de origem específico. Essa abordagem pode ser útil para a pratica neurológica, mas é importante o cuidado para que ela não obscureça e simplifique uma visão maior e completa do problema. Muitas vezes a CNEP é desencadeada inteiramente por algum outro distúrbio psiquiátrico como um Transtorno de Ansiedade (como síndrome do pânico). No entanto, em outras situações outros distúrbios psiquiátricos podem ser mais comórbidos do que uma causa da CNEP. É importante ter em mente que muitos pacientes com CNEP são diagnosticados como epilepsia e mantém tratamento com antiepilépticos por anos. Aliás, a epilepsia e a CNEP podem se sobrepor, fazendo com o que o paciente apresente os dois tipos de crise. É frequente a dificuldade em se explicar para o paciente que ele não é realmente epiléptico. Tendo sido tratado para epilepsia antes do diagnóstico correto ou não, um simples encaminhamento para a psiquiatria muitas vezes leva a perda de acompanhamento do paciente.
Outro problema relacionado a CNEP é a discriminação por parte dos próprios profissionais da saúde quando ao quadro. Isso em parte pode se dar pelo despreparo dos profissionais, tanto de neurologistas quando emergencistas, para essa condição. A CNEP exige conhecimentos de epilepsia que muitas vezes são negligenciados pelos Psiquiatras, e conhecimentos de psiquiatria que muitas vezes são negligenciados pelos Neurologistas, deixando a doença em um vazio entre as duas especialidades. Além disso, culturalmente as doenças com explicação fisiopatológica são mais valorizadas do que aquelas funcionais, deixando a CNEP sendo considerada por muitos como uma "falsa" apresentação de sintomas.
Finalizando, é importante ter em mente que é necessário ir além de uma busca por uma normalidade anatomofisiológica, e buscar valorizar a subjetividade do paciente. Encurtar o limbo entre Neurologia e Psiquiatria é essencial para a resolução desses problemas.
Rafael Henrique Neves Gomes
Referências:
RAWLINGS, GH; BROWN, I; REUBER, M. Deconstructing stigma in psychogenic nonepileptic seizures:
An exploratory study. Epilepsy & Behavior. N. 74, p. 167-172, 2017
KURCGANT, D; AYRES, JRCM. Crise não epiléptica psicogênica: história e crítica de um conceito. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.18, n.3, p.811-828, jul.-set. 2011
BROWN RJ; REUBER, M. Towards an integrative theory of psychogenic non-epileptic seizures (PNES). Clinical Psychology Review. N. 47, p. 55-70, 2016